estradas cinzas todas congestionadas, sem sinal. os dias de chuva com cheiro de concreto, um lugar distante desperto. as luzes em vão ofuscando estrelas, quando somos destroços mixados do que há lá fora e me recordo todos os dias quando levanto. nuances azuis e roxas. pigmentos brutos, parece sujeira. e não é sujeira? bagunça, louça, rouca, pouca, canto. nascem samambaias onde não deveriam nascer, nascem mamão papaya e flores de frutas. meu berço sem aconchego encontra espaços novos em contrações lindas que nem esperava. o gato no telhado mira me y mia me como querendo dizer que tá mais do que na hora e decidi cruzar dedos juntos de um amigo, cruzar seus cachos cor de marshmallow e cuidar. trens e metrôs cruzando entre eles e nós entre nós entre a gente. transparente os espelhos das escadas gigantes refletem tudo, mas não como as tantas pessoas que correm por ali. uma entre tantos, única antes de me deitar lembrando.
cai a tarde e o tudo me esmaga. Avenidas e pontes me atravessam sem sentido algum. Carros, carroças, ônibus e caminhões também. Poças d’água me encharcam, sem sentido algum. O sentido aranha que me faz rir, mas tanto significado. Aracnofobia e ser uma aranha numa presença simultânea. O sofá rasgado, a xícara de café sem açúcar e rosnado de cadela. Muro chapiscado, pichado “Amor, Amor complexo Edson.” em letras tolas verdes. Verde-Palmeiras. A camisa do Vasco, Flamengo e esses times que aí tem e desconheço. A parede enorme sem pontes mesmo depois de uma perda que poderia… Poderia, mas paredão. As cores que não lembro o nome quando cai o céu.
Duas escovas de dentes pra quem? O medo de estar a sóis e a pele responder com escamas e queloides. As pedras que um dia uma criança guardou despropositada de porquê, criança que gosta de pedras, coleciona várias delas e guarda no fundo da caixinha que está no fundo do guarda-roupa. Corrimão de escada com fim, toda escada tem térreo igual apartamento tem base, colunas, colunas modernas tristes, aclássicas. Antropologia, maquinaria? Tecnologia. Antropólogo das máquinas inteligentes sem tempo para regar plantas.
Na cadeira estática o balanço incorpóreo da biologia. Imagina que a única possibilidade de movimento fora são os olhos sem expressão, mas olhos. Assistir líquidos que escorrem, destes alguns sapateiam lindamente e doutros evaporam. Tenho vontade de urgir, mas contra fluídos é tolice, é insano. Eu me derreto por fim, me rendo, numa peça gosmenta de pele-água e me sinto fora do contexto, porém com tempo, habitat e tudo bem. Liquidada e adaptável, movimento entre chãos lisos, porosos ou pedregosos, nunca parasita, água color que pira, rodopia e fera URGE, como quando escorre da pia forte e toca os canos.
Boleto com o poema do Álvaro de Campos.
Revanche. Avalanche.
Ninguém estanca.
A vidraça e os ossos salientes

Na brasa dos órgãos que pareciam inverno tiro a minha calcinha vermelha e você lavou suas mãos, compreende? Nua, crua, suja. Nas danças dos bailes confesso que me preocupa os destroços que deixarei. Penso numa vidraça não mais intacta, já no que já era, no que se foi, estilhaçada no chão feita só cacos de vidro. Há sentimentos que não conseguimos nomear: verão em pleno inverno, meu corpo queima parecendo o que chamariam de inferno. Meu rosto rosa. Memória sequelada. Rádio-relógio com pilha, canções e vozes que saem sem permissão, atos-falhos em sequência sem uma conclusão e ressaca da tarde passada. Cadeado onde se põe a chave, não cabe, ilogicamente tentei, mas fui tentada antes de tudo. Levada. Brinco com o isqueiro na intenção de me queimar e sempre me queimo, o que não é novidade. Feito Sol, feito hélio. Você coloca a mão envolvendo a derme do fruto e depois saboreia e eu gosto de sentir na flor da pele o novo, de novo e de novo. Eu rosa no rosto e cravo no corpo, vermelho. Cores de verão em pleno inverno, não no dorso ou nas extremidades, mas nu,
cru.
Enfrentar tudo que me devora numa devoção que nunca vou ter, numa fome incalculável que nunca tive. Gestante do meu próprio ser numa idade precoce ou tardia? Olho-me no espelho, agora bem mais do que antes, até não saber quem sou eu, até não ter mais respostas e acrescentar mais um questionamento na minha lista de indagações e enxergar esse ponto de interrogação antropomorfizado que anda, come, bebe e sente. E sente. Gestante do meu próprio ser, vou parir-me sentindo as minhas contrações de mãe e minha vontade imensa de chorar como filha.
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Todo dia um parto.
Meu corpo enverga, meu tronco todo se retorce, numa busca faminta de coisas profundas ainda sem nome, inomináveis. Indomáveis, até então. Busco, como num lago fundo e lamacento formas sólidas da abstração que me envolve. Procuro, procuro, e procuro, e assim tem sido por um bom tempo. Já pensei em enfiar o dedo na goela e vomitar todo esse enigma indecifrável do ser sensível, pelo menos não teria que me abrir de forma tão bruta às vezes e tocar onde eu não queria. O que há de tão imenso que não cabe num corpo e em poucas palavras? Meu tronco todo se retorce para dentro de mim e me perguntando: O que há de tão imenso que não cabe num corpo e em poucas palavras?... E num susto, abro meu peito e só consigo pensar em como estancarei o sangue vivo que corre. Será hoje que conhecerei essa preciosidade inominável? Abro meu peito e o que há além de órgãos pulsando? E por que dói tanto? Dou às pessoas mãos vazias, mas cheias dessas coisas sem nome e que doem tanto, que me preenchem tanto.
Cotidiano. nostálgico

Meu avô tinha cicatrizes em suas mãos, ele era autor de várias obras manuais. Lembro de sua pele cheia de cores e uma marca de um prego que um dia esteve lá. Olho para a minha mão e não lembro apenas da minha mãe, mas também do meu avô. Lavo a louça, percebo que tateando os talheres um deles é diferente, não se acomoda como os outros na gaveta. Não era bonito, parecia até um projeto de algo que estaria vindo a ser, como se eu estivesse segurando nas mãos a própria mutação.

Cotidiano. 02

Brinco com a palma das minhas mãos lembrando-me da minha mãe e seus trejeitos.

Minha cadela sai da sua casinha só para poder ouvir os pássaros. Eu estava ocupada, virei para olha-la para saber o que estava fazendo e ela se assustou, pareceu que gostaria de esconder aquele gesto que soou meio humano, como se ela tivesse se transformado em cã assim que a olhei. Nos olhamos e senti no peito uma catarse de espécie animalia. Qualia. Quem diria... Sinto, sinto e me viro, momentos como posso. Momentos como devo.
um dia após a morte de Gal Costa você me chamou.

penso com um órgão metafísico, sinto com a carne. tirei o dia pra viver uma licença poética e acabei tropeçando em fogo que não queima, mas arde ao som de Tom Zé. sempre que posso me esparramo, no sofá ou na cama, e você me deixa tão à vontade. um queijo empanado em forma de coração e você come dois terço dele e me come por inteiro. novas surpresas de diferentes gêneros. quando eu estiver com outro alguém em outros instantes quero guardar comigo o poder de se esparramar. quis te deixar recados, mas respeitei o tempo-rei do que é pra não ser. nunca fomos e nunca seremos. sereno da rua fria, você foi fogo no inferno que tudo tem sido. lembro que já fui razão pra um poema seu e isso me dá vontade de queimar toda a má crença que tive e às vezes ainda tenho do ser humano que sou. busco pela a auto-adoração divina, mas a descrença é tamanha, me resta ser guiada pelos sonhos de quando consigo ter uma boa noite de sono. depois de fazer fumaça é tchau, sem beiço e nem bença.
comidas salgadas em pratos de sobremesa y bolos estranhos. cigarras que cantam enquanto cigarros queimam os cantos das cortinas. lembro dos ladrilhos brilhantes, meu corpo descascado feito mosaico combinando com paredes raladas y rebocadas. o cheiro das flores brancas antes de derrubarem árvores, talheres, estruturas. o cheiro do talco, do perfume e do que fica. Do que fica aqui. Conosco. Sem permissão.

as cadeiras de plástico em frente de casa, domingos y segundas-feiras, dormindo y prateleiras empilhadas de pratos de vidro. não abra, vai desmoronar. frágil diz o símbolo. frágil diz o símbolo na caixa enorme que evolve tudo.
os gatos da vizinha festejam de maneira inadequada, o portão parece lanças y de relance um tchau, até nunca mais.